terça-feira, 21 de outubro de 2008

Peça não ordinária

Depois de muitos sóis postos (agitados, dementes, eloquentes) e de muitas luas acordadas (repentinas, sombrias, sonolentas), e de rotações quase imperceptíveis, e de corrupios insolentes, chegava a casa a Frésia. Após ter descodificado o sinal que lhe abria o portal materno, sentiu o aroma prepotente do bolo de laranja, que outrora lhe fizera as delícias. Já sentia saudade, nutria até um certo carinho pelo aposento mágico que tantas noites tivera servido de céu aveludado, onde os sonhos ganharam contornos.
As rotações continuavam, o sol agitado demente eloquente teimava em sair de cena e a lua repentina sombria sonolenta já estava adereçada, preparada para ser empurrada pelo encenador. Já o dramaturgo ambientava a atmosfera, arquitectando uma matiz de azuis nostálgicos. Talvez por isso Frésia sentisse uma enorme vontade em ceder àquela magnífica peça teatral, talvez pela sua beleza. Mas não podia naquele lar pernoitar.
Fez ranger a porta do armário, em jeito de quem o abre. Tacteou pelo seu interior à procura de um copo. Abriu a torneira que fez ouvir o líquido apressado.
Frésia esquecera-se de retirar o ralo do lava-loiças, e talvez por isso tenha tido oportunidade de observar a espessura sinuosa daquele lençol mágico.

Clausura

Cansado de inspirar e expirar, de tentar e de falhar.
Cansado de ter força de vontade e de à minha volta nada espelhar. Cansado de tentar lutar contra uma coisa que não vai, não vem, não volta, não mexe, não vive, não existe.
Só o sol (por detrás das barras) parece dar-me esperança para descobrir a chave e abrir a porta da cela.

Porque farto de paredes à minha volta estou eu.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Cronómetro da Noite

Podia abrir a minha gaveta e ir buscar as tuas fotografias. Aquelas que tirámos juntos, junto à ponte, junto ao rio, junto à grande torre do relógio. Ou aquelas que tirámos - sem autorização - no metropolitano ou no museu. Porque viver é infringir os limites.
Perante tamanha nostalgia, rendi-me à insónia e levantei-me. Abri a janela - como gosto de ver a noite do meu posto de vigia. Só lhe acrescentava um pormenor: chuva. E abraços. E sorrisos.
Sentado na secretária, e com as luzes apagadas, consegui folhear um álbum com o auxílio do luar. O dia seguinte seria duro, daqueles muito sobrecarregados e impossíveis, e tinha plena noção que não podia passar a noite em branco (maldita insónia).
E sabia que iria ficar a ver aquelas fotografias, e após uma contagem até 10, já o luar tinha ido.

Sem ter conseguido arredar pé daquela secretária, e meio tonto por não ter dormido, estava agora triste. Com o sol já a espreitar, sentia-me condoído, triste, nostálgico, com saudades.
De ti.


Parabéns, R.L. e C.M.
Um dia muito feliz e muitas felicidades.